A poética de Cummings


Equilíbrio e unidade na poética de e.e. cummings

por Rodrigo Lobo Damasceno




         Num poema dedicado a Picasso, enquanto procura definir a pintura do espanhol, e.e. cummings não consegue fugir da idéia e da representação de ruídos. Utiliza seis vocábulos distintos que, em maior ou menor grau, indicam resmungos, grunhidos, chiados, gritos e guinchos. Há uma violência inegável no método artístico de Picasso (a certa altura, o poeta se refere até mesmo a um machado que derruba as árvores do Ego) que, ao ser tratado no poema, torna violentos também os versos. O leitor familiarizado com as obras do mestre espanhol e do poeta norte-americano certamente recordará as pinturas da fase cubista e os poemas de tipografia revolucionária — mas esse mesmo leitor, se for de fato familiarizado com Picasso e com e.e. cummings, perceberá estar diante de uma representação parcial dos seus métodos de criação. A violência das pinceladas, que aqui também é a violência dos versos, não dá conta das obras multifacetadas nas quais também há espaço para a delicadeza e o silêncio.


            Num ensaio intitulado "A unidade na arte de Picasso", Meyer Shapiro não procura disfarçar a sua estupefação diante do caráter vário das pinturas do mestre espanhol. Escreve que "Se suas obras não fossem identificadas diretamente com seu nome, se fossem mostradas todas juntas numa grande exposição, seria muito difícil afirmar que pertencem a um único homem". Mais adiante, buscando compreender o que une tamanha variedade de estilos e de temas, Shapiro analisa o óleo "Acrobata sobre bola" — sobre o qual escreve: "Mostra dois acrobatas: um está sentado sobre uma grande pedra — maciço, escultórico, os membros e o bloco de pedra constituindo direções verticais e horizontais; o outro, a jovem acrobata, feminina, lábil, equilibrando-se, assimétrica, sobre uma pedra esférica. Dois modos diferentes de equilíbrio em arte, que pertencem ao mundo dos acrobatas tanto quanto aos do pintor, são apresentados juntos". Sua interpretação, que é de fato exemplar, pode bem se estender do acrobata e do pintor ao poeta, sobretudo ao poeta e.e. cummings, equilibrista tão lábil e assimétrico quanto a jovem criada por Picasso e que, não por acaso, afirma, na introdução ao livro de poemas Is 5, que seus poemas procuram competir com os acrobatas.


            Numa resenha sem assinatura publicada em 1927, pouco depois do lançamento de Is 5, o crítico anônimo observa que "[...] But Mr. Cummings is five — at least five: maker, preacher, experimenter, jester, word-artist extraordinary". Não caberá, nesse estudo breve, uma consideração ampla dessas cinco categorias despretensiosas propostas por um anônimo e nem tampouco sua reconsideração com vistas à sua ampliação ou restrição. Diga-se, apenas, que as categorias de criador e experimentador, na proposta estética de cummings, revelam-se análogas — bem como o pregador e o bobo, em grande parte de suas sátiras eloquentes, se confundem. A quinta categoria, naturalmente, é simples (conquanto sincero e verdadeiro) elogio.


            Ressaltar a variedade da arte de cummings, além de ser uma forma óbvia e inevitável de apreciá-la e compreendê-la, é, no caso do leitor brasileiro, uma forma de redescobri-la ou, pelo menos, redimensioná-la. O seu nome e os seus poemas se tornaram conhecidos no Brasil por conta do trabalho crítico e de tradução dos poetas concretistas, sobretudo de Augusto de Campos. Esses, naturalmente, fizeram uma seleção condizente com a proposta poética do movimento que fundavam. Não seria o caso, no entanto, de acusá-los de uma parcialidade condenável, sobretudo porque até mesmo um poema mais convencional no que diz respeito à sua disposição visual como "nalgum lugar em que eu nunca estive, alegremente além" foi recriado por Augusto de Campos. Mais acertado ainda, porém, é observar, a favor da seleção feita pela vanguarda tardia brasileira, que a imensa coleção de poemas deixada por cummings não se submete facilmente ao retalhamento: é próprio dos grandes criadores tornar cada poema um exemplar concentrado de sua índole formal e temática. No caso da recepção de uma obra traduzida, no entanto, a ampliação do número de poemas recriados é fundamental — e se alguns dos tradutores iniciam o seu trabalho por conta da insatisfação com as poucas versões de Augusto de Campos, tanto melhor. Mais recentemente, por exemplo, outros tradutores têm se dedicado a divulgar, em língua portuguesa, sua lírica amorosa e seus versos bucólicos — o que, desde já, permite aos críticos, leitores e poetas brasileiros uma apreensão mais ampla da obra de cummings, condizente com a sua proposta de uma poesia que se ampliasse de modo a abarcar tudo o quanto pudesse ser criado e recriado em palavras.


            Desde as suas publicações iniciais, cummings deixa evidente que, ao contrário do que faziam os futuristas e as outras vanguardas mais radicais das primeiras décadas de 1900, sua poética não excluía aspectos que, naquele momento de êxtase e exagero progressista, pareciam aniquilados. Justamente por isso escreve, no prefácio de Is 5, que seus poemas competem e se inspiram tanto em locomotivas quanto em rosas, tanto nas chaminés quanto nas tulipas, tanto na eletricidade quanto na primavera. Num poema já traduzido por Augusto de Campos, o poeta descreve
 
uma  lo
co
mo
     tiva    c  uspi
                        ndo
                              vi
                              o
                              letas.
 
— imagem que dá a medida de que, além de tratar dessas duas figuras, não o faz de forma dissociada; procura misturá-las, tenta submetê-las a uma unidade que é, afinal, o poema. Num ensaio a respeito de cummings, Octavio Paz já observara que, para o poeta norte-americano, o poema, mais do que um meio para a comunhão, era a sua própria concretização.


            Seria o caso de tomar emprestada, para caracterizar cummings, a expressão cunhada por Manuel Bandeira a respeito de Murilo Mendes, definido pelo pernambucano como um "conciliador de contrários". A busca por borrar os contornos da matéria com a qual trabalha é uma constante na obra de cummings, sendo perceptível tanto no nível semântico quanto formal. Sobre esse último, observe-se que a estranheza tipográfica de alguns poemas, dispostos quase como caligramas na página, terminam por obrigar o leitor a utilizar-se, ainda, de uma percepção pictórica, o que traz, para o poema, algo das artes plásticas. Essa, no entanto, não é a característica definitiva da inovação formal de cummings (a bem dizer, Apollinaire, antes da estréia de cummings em livro, já levara tal possibilidade ao extremo com seus Calligrammes). O grande trunfo do norte-americano é desfazer a morfologia do idioma, conseguindo, por meio de uma disposição silábica peculiar, desdobrar em dois ou mais sentidos um único vocábulo, como se vê no poema no poema "Beautiful"
 
Beautiful
 
is the
unmea
ning
of(sil
 
ently)fal
ling(e
ver
yw
here)s
 
Now
 
que, sobretudo nos dois últimos versos, se desdobra de forma impressionante. Observe-se que a definição da beleza, proposta já ao início do poema, se ampara, numa leitura inicial, na neve caindo silenciosa e sem significado. No entanto, o trabalho tipográfico de cummings permite-nos uma segunda leitura, na qual os dois versos finais deixam de ser fragmentos de "everywhere" e "snow" para se tornarem "here" e "now", aqui e agora, termos fundamentais da poética urgente e hedonista de cummings. Dessa maneira, duplicam-se tanto a significação imediata da palavra quanto a sua sonoridade e são potencializas (de forma ainda mais incisiva) as possibilidades interpretativas da obra. O poema se inicia com um vocábulo preservado em sua integridade e grafado com maiúscula (Beautiful) e pode ser lido como se se encerrasse da mesma maneira (Now). "Beleza" é igual a "agora". Algo semelhante pode ser visto no poema "because it's Spring", no qual, ao longo das três últimas estrofes, a palavra "because" se desfaz em indicações de ser (com o verbo "be") e da união de I e You (com o pronome "us"):
 
what's wholly
marvellous my
 
Darling
 
is that you &
i are more than you
 
& i(be
 
ca
us
 
e It's we)
 
São exemplos bem definidos daquilo que os concretistas chamaram de "atomização" da palavra. O trabalho de cummings é desfazer a palavra para multiplicá-la. É difícil encontrar precursores desse método. No poema-chave "Un coup de dès", Mallarmé não alcança (porque não busca) esse nível de desconstrução — preocupa-se, antes, com alterações e possibilidades sintáticas, mas não morfológicas. A sua crise do verso é a crise do verso alexandrino na poesia em língua francesa, como apontou recentemente o poeta Marco Siscar. É pertinente anotar, ainda, que se trata de um expediente oposto à proposição da palavra-valise modernista (muito embora cummings também se utilize desse método de criação): enquanto esta busca a re-significação por meio da união de vocábulos distintos, o processo de cummings procura a pluralidade instalada nas palavras de forma arbitrária — e a sua poesia flagra cada vocábulo no momento mesmo da sua construção, tornando significativo justamente aquilo que tomaríamos como gratuito e insignificante. Haroldo de Campos, na esteira de Roman Jakobson, alerta que, para o poeta, “toda coincidência fonológica é sentida como um parentesco semântico”, princípio que funda uma espécie de “pseudo-etimologia” ou “etimologia poética”.

Essas observações de Haroldo surgem de considerações a respeito do ensaio "Os caracteres da escrita chinesa como instrumento para a poesia", de Ernest Fenollosa. Nele, o orientalista norte-americano escreve que a concepção ideogramática chinesa tende a representar "as coisas em movimento, o movimento nas coisas" assim como, no processo de composição dos ideogramas, "duas coisas que se somam não produzem uma terceira, mas sugerem uma relação fundamental entre ambas". Não seria o caso de igualar os processos de cummings com a construção ideogramática (e nem de observá-lo como um adaptador do método de escrita chinês para uma língua ocidental), mas de perceber, sobretudo a partir das observações de Fenollosa, ligações da escrita pictórica oriental com a construção, a apresentação e a disposição das imagens poéticas de cummings, autor tocado pelas propostas imagistas: ambos se projetam mais por meio de um processo relacional do que lógico. Para além disso, observe-se que tanto a tipografia de cummings quanto a natureza dos caracteres chineses se aproveitam do aspecto pictórico e visual. A esse respeito, o ensaísta chinês Yu-Kuang Chu escreve que “É ainda certo, entretanto, que os chineses tratam os caracteres escritos como desenhos artísticos”. O desejo de cummings, ao redimensionar a importância da organização visual dos versos, é de índole semelhante.

O mesmo poema citado acima ("because it's Spring") serve como exemplo da conciliação de contrários realizada por cummings, também, no nível semântico. A união total entre o "eu" e o "você", concretizada no "nós", é constante ao longo da sua obra. E, nesse processo de identificação, a primavera exerce um papel central: é sobretudo nela que a fusão ocorre. O trabalho de cummings com a natureza (expressa quase sempre pelo início e pelo auge da primavera) se configura em espécies de topos discerníveis ao longo de diversos dos seus poemas.
            Assim se inicia "because i'ts Spring":
 
because it's
 
Spring
thingS
 
dare to do people
 
(& not
the other way
 
round)because it
 
's A
pril
 
Lives lead their own
 
persons(in
stead
 
of everybodyelse's)but
 
            Esse poema é exemplar do trabalho dúbio de e.e. cummings diante da tradição e de como uma leitura de sua poesia através das necessidades e crenças das vanguardas pode incorrer em equívocos. Nele, cummings trabalha brevemente com o tópos do "mundo ao revés", tão bem estudado por Ernest Robert Curtius — que, em busca de sua origem e do seu desenvolvimento, parte do trabalho de Arquíloco e encontra realização plena em Virgílio. Esse tópos, como aponta Segismundo Spina em Do formalismo estético trovadoresco, tem como base "a expressão de um descontentamento". Porém, tanto Spina quanto Curtius apontam a poesia de Arnaut Daniel como caso distinto, no qual o mundo ao revés ganha conotações positivas. O mesmo se lê no poema de e.e. cummings — poeta que se põe a tratar, em sua tipografia peculiar e extremamente moderna, um lugar-comum da tradição poética européia. O tópos do mundo ao revés reaparece em outros poemas de cummings, quase sempre de forma positiva e ligado ao início da primavera. Percebe-se, portanto, uma inversão da natureza do tópos: para cummings, o mundo posto ao revés é, em realidade, o mundo em seu funcionamento ideal.


            Leia-se, a título de exemplo, os versos de "what if a much of a wich of a wind", nos quais os ventos que trazem a primavera também "Blow hope to terror; blow seeing to blind/ (blow pity to envy and soul to mind)". Num outro poema, escreve que a primavera "a perhaps hand" que vem "out of Nowhere" para mudar tudo “carefully". A primavera de cummings, portanto, é fator que determina modificações e inversões lógicas — espécie de momento libertário capaz de provocar as rupturas e as cisões necessárias para que o sujeito poético possa, de alguma forma, escapar. Noutros momentos, encontram-se traços de metamorfismos: num poema (“when god lets my body be”), a rosa que inicia a primavera sai dos lábios do poeta, assim como dos seus olhos brotam árvores — imagens que, em alguma medida, remetem também a um tópico tradicional da poesia ocidental cujo maior expoente seja talvez Ovídio, mas que ainda são discerníveis em grande parte da poesia moderna (em alguns versos de Lorca, rosas brotam da língua do eu lírico).


            Note-se, a partir de tais observações, que se trata, aqui, de um poeta envolvido numa busca constante pelo equilíbrio, mas que não concebe tal equilíbrio como condição facilmente alcançável; não está, grandioso e pesado, sentado numa pedra maciça. Ao contrário: para cummings, equilibrar-se é um processo que, mais do que estaticidade, envolve movimento — daí a sua palavra que se desfaz na página, sua letra deslocada, seu sentido em investigação, sua poesia passado-presente-futuro. Definir tal poesia, no entanto, não é trabalho que caiba a uma única palavra — portanto, para uma pretensa definição, talvez fosse melhor adotar um outro processo da linguagem oriental, explicado por Yu-Kuang Chu no seu artigo "Interação entre linguagem e pensamento em chinês". Escreve o ensaísta que, em chinês, "As idéias são muitas vezes denotadas por expressões compostas, constituídas de antônimos" e, como exemplo, explica como se expressa a idéia de "movimento" na língua chinesa. Não havendo uma palavra específica, "movimento" é "avanço-recuo". Trata-se, como se vê, do movimento mesmo transfigurado em símbolo fonético e pictórico: nada mais apropriado para indefinir e.e. cummings.





Rodrigo Lobo Damasceno é graduado em Letras Vernáculas pela Universidade Estadual de Feira de Santana e, em 2007, lançou o livro de ensaios Borges e Bioy (Editora Tulle). Mantém o blog Vai t’en chanzos: http://chanzos.blogspot.com/


Artigo publicado em dEsEnrEdos 

(uma revista de cultura e literatura)